[Émon. Exercícios de estilo. 3] Émon conduz em direcção aos penhascos. À sua frente brilham dois sois. A seu lado enrosca-se Poésy, uma loura estonteante, incomodada com os solavancos produzidos pelo piso irregular e semeado de concavidades. O carro é aberto, recebe a brisa do mar e a luz ofuscante. Émon está deveras satisfeito. Sorri com franqueza, mostra os dentes brancos, as orelhas salientes, a face beije adorável. Imagina-se já a encher as mãos com os seios de Poésy. Meter as mãos naqueles seios que explodem para fora do decote. Poésy está agora sentada direita. Tem a face protegida por uns óculos máscara, negros, em forma de borboleta, que lhe sobem do queixo até à testa. Por trás, os cabelos louros que faíscam e caem em rolos largos. Largo de ombros é também Émon, que se debruça sobre a beldade, depois de ter desligado o motor do automóvel, à beira dos penhascos. Ela afasta-o. Tem braços poderosos. É animal que desenvolve bons músculos.

Aproximam-se, vindas das redondezas, raparigas resolutas. Tomam posições estratégicas e telegénicas. Uma delas caminha, direita como uma tábua, de vestido vermelho justo, botas de cano alto vermelhas. Pára e enfrenta os dois sois, devidamente defendida por lentes escuras. Sobre uma rocha de modelo curvilíneo estende-se uma outra, a preto e branco e dois cinzas, de biquini, cabelo penteado para trás e lábios entreabertos. Ou então outra semelhante, mas a quatro cores, recosta-se num pormenor arquitectónico avulso, em forma de L tridimensional branco. Nua, vestindo o pescoço com um colarinho, mais uma toma posições, segura numa barra vertical, com o corpo contorcido. A Captiva veste um body em jersey preto, um conjunto em tiras que lhe apertam os ombros, os cotovelos, a cintura e os pulsos, presos ao todo. O cabelo é preto e liso, a linha dos olhos coberta por uma máscara vermelha, os lábios pintados com um material espesso. Abaixo, um soutien-gorge em metal, duas meias esferas com um nariz de pinguim. A Captiva está na confluência de forças de todas as outras. Emana emoções corporais que controlam física e psicologicamente as suas parceiras. Inicia o processo profundo de autoconhecimento, conduzido pela respiração-consciente. As raparigas repercutem este processo. É um processo de crescimento pessoal que desbloqueia tensões, liberta a energia sustida e expande a consciência.

Este renascimento libertário instala-se. Poésy afasta de novo Émon e levanta-se, no carro. Eleva os braços, salientando extraordinariamente os seios, redondos e suculentos. Abre os lábios. Pronuncia frases elaboradas. Fabrica um discurso de teoria pura, despido de contacto com a realidade. É um mergulho. Um corpo ascensional, que fura a atmosfera, contraria a gravidade. Uma ascensão acompanhada pelo desenrolar dos seus caracóis louros e brilhantes, que tomam diferentes configurações. Um ser físico que desenha uma linha com curvas que se opõem, um ser composto por curvas que se alteram. Émon saliva enquanto escuta a tese e sai de si mesmo, sai do seu fato verde e flutua sobre as raparigas, sobre os penhascos, todo matéria etérea coberta de saliva, pele, músculos e ossos etéreos numa viagem flanante, lenta, de emoção clara devidamente inalada e potenciada de bem-estar. Desce ao oceano, onde se introduz no ponto de intersecção das espadas de luz lançadas pelos dois sois.


Django
































"A Cabine do Amador" (colectiva)
Espaço Avenida
Avenida da Liberdade, 211, 1º D, Lisboa
Quarta a Sexta, 18:00 - 22:00
Sábado e Domingo, 16:00 - 21:00
14 a 30 de Março de 2008































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Soraya Vasconcelos
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O Verão é uma estação parva porque as moscas também são parvas e andam por todo o lado. Os seres humanos vão para a praia e as moscas ocupam o seu lugar. Estão por todo o lado e com ideias impecáveis, de mosca. Ideias glutinosas, que se agarram às paredes e sujam, como as de certo psiquiatra que, apanhando uma janela aberta, entrou para uma das páginas do jornal Público e ali ficou, impecável, claro.

Doutor, não pode explicar com maior clareza que o Homem é um animal e que portanto é um ente possuidor de agressividade e que isso é normal? E que é saudável deixar expandir a agressividade? Saudável para cada um e para todos — digamos, um país, o mundo. Mas o psiquiatra tem medo das demonstrações de vitalidade. Eis a sua visão: a civilização encarrega-se de entreter o Homem com uns espectáculos e etc., satisfaz-lhe as necessidades imediatas, tornando-o um ser pacificado. Circo e pão. Uma sociedade bonita, sem conflito. É este o rumo que não se pode perder.

E é isto que desejamos para nós próprios? Ou para os outros? É para isto que nos aplicamos, mesmo sem sabermos? Serão então bem-vindos os parvos, que se limitarão a viver de forma mais animal possível, mas expurgados da agressividade. Inconscientes, seguindo o dono (ou o líder). A civilização arrumada.

O pior pesadelo de alguém que morde a polpa da vida e preza a sua independência é imaginar que o inevitável terá de acontecer e que a sua vida é encaminhada por uma organização parda escondida por baixo de uma gabardina. Há a suspeita. Há, a tempos, quem o defenda. Admiro a frontalidade engravatada, o pesadelo viscoso que nos querem esfregar na pele, o vómito que me provoca. Vomito todo o conteúdo do meu aparelho digestivo até me restar unicamente a bílis, que cuspo, amarela, imitando as moscas, espalhando o ácido dissolvente que nos salva. Senhor doutor, arde-me tudo.

Mas a civilização é também um agente de violência. O excesso de civilização resulta em vontade de excessos. Gastronómicos, hooligânicos, ou a simples entrega aos prazeres da adrenalina, da agressividade primordial. É raro o ser humano que não tenha necessidade de sangue. Mesmo adormecido pelos encargos da sobrevivência — emprego, deslocações e outras coisas cansativas — ou adormecido pelo doce lar e pela TV. É uma entidade frustrada se não se entrega à violência. Aos rugidos, às ameaças, à pancadaria. Um ser vivo precisa de carnalidade activa. A organização e o controlo podem amolecer alguns. Todos os outros serão uma massa de frustrados, encurralados numa sociedade que os vigia. Podem tornar-se extremamente violentos. Porque se sentem presos, ou entediados. Mas não fazem guerras. As guerras são idealizadas pelos grandes civilizadores.



[Este texto tem por base o texto de opinião de Pedro Afonso, médico psiquiatra, publicado no jornal Público do dia dois de Agosto de 2008, inexplicavelmente.]