Manequins obscenos. Mortes conceptuais. A erotização da violência na paisagem mediática. As atordoantes fotografias de Steven Meisel em “State of Emergency”, na Vogue Italia de Setembro de 2006, parecem directamente saídas de um livro de J. G. Ballard: The Atrocity Exhibition







Recentemente perguntei se seria “possível haver pornografia patrocinada pela Dior ou Chanel, ideada por um Masoch ou Ballard de última extracção, exibindo fantasias tão habilmente encenadas como as mais glamourosas produções de moda?” As fotografias de Steven Meisel na Vogue, muito mais do que os deslavados filmes promocionais realizados por Mike Figgis para a Agent Provocateur, sugerem que essa pornografia é concebível.

“State of Emergency” mostra, mais uma vez, que compete à moda ocupar o lugar que a arte, sem dúvida, abandonou. Quando muita da arte sucumbiu à “paixão do real”, o moda permanece o último reduto da Aparência e da Fantasia.

Os tampões usados e animais em frascos da arte-realidade oferecem, no seu melhor, vestígios do empírico. O seu singular biografismo nada revela do inconsciente. No entanto, as elegantemente encenadas fotografias de Meisel respiram uma ambivalência que iguala as melhores pinturas surrealistas. São desconfortáveis e provocantes ao mesmo tempo porque devolvem um reflexo das nossas atitudes em conflito e das inconfessáveis cumplicidades libidinosas.

Reenquadradas como arte, as fotografias da Vogue seriam sem dúvida descritas – nos muito familiares termos da linguagem da crítica de arte – como “problematizando os conceitos de violência/terror/etc”. Com o estatuto de fotografia de moda, encontram-se com um tipo de denúncia de esquerda não menos familiar. No jornal The Guardian, Joanna Bourke reclamou: “Não é coincidência que as forças de segurança nos protejam de uma pessoa que não é um homem nem obviamente muçulmano”. Teria Bourke preferido que as imagens mostrassem um homem muçulmano?

Bourke continua: Em vez disso, a ameaça terrorista é uma mulher irreal. Em contraste com as forças de segurança representadas, ela é colocada fora da esfera do humano. A sua pele é de plástico, tal como a de um manequim; o corpo é demasiado perfeito, mesmo contorcendo-se com a dor. Quando a modelo é retratada como o agressor, ela não é mais do que a fálica dominatrix dos sonhos húmidos de muitos rapazes adolescentes. Nos dois casos, a beleza das fotografias transforma actos de violência e humilhação em possibilidades eróticas.

Mais uma vez, o que teria preferido Bourke: uma simulação entediante onde mulheres de “aspecto real” seriam brutalizadas por forças de segurança? A hostilidade de Bourke em relação ao fantasmal é estranhamente magnificada pela agressão da “mulher irreal” pelo corpo de segurança. O que poderia significar a substituição de uma “mulher irreal” por um muito real muçulmano masculino? O que nos diz a confusão de níveis ontológicos – agentes de realidade misturados com a reluzente artificialidade de manequins de montra? As fotografias são fascinantes e inquietantes porque não há respostas claras para estas questões.

Sem dúvida, as fotografias de Steven Meisel descobrem possibilidades eróticas na violência e na humilhação, sendo não tanto um processo de “transformação” mas, antes, uma redescoberta. Duzentos anos depois de Sade, um século depois de Bataille e Masoch, parece que reconhecer em público que o erotismo é inseparável de violência e da humilhação é mais inaceitável do que nunca. A questão não é saber quão “saudável” pode ser a sexualidade limpa de violência, mas como a violência inerente à sexualidade pode ser sublimada. As fotografias de Meisel – que, devemos lembrar, apareceram numa revista que tem como leitores, em vasta maioria, mulheres, e não adolescentes masculinos – são “kits-fantasia” que providenciam justamente essas sublimações, fornecendo enredos, sugestões de representação e potenciais identificações fantasmáticas.

“State of Emergency” demonstra que, mais do que simplesmente conservar a sua capacidade de chocar, The Atrocity Exhibition (1970), de J. G. Ballard, é mais perturbante que nunca. A aberta sexualização e a carnalidade compulsiva da cultura da imagem pós-moderna desvia-nos a atenção do acontecimento substancial: a sua rendição do erótico. Tal como Baudrillard argumenta em Seduction (1979), o sexo biologizado funciona como axioma da realidade na cultura contemporânea: tudo é redutível ao sexo, e o sexo é uma simples questão de mecânica corporal. Vivemos numa era cínica e piedosa que, com afectado prurido, resiste às equivalências entre erotismo, violência e celebridade exploradas por Ballard.

Entrando na exposição, Travis vê as atrocidades do Vietname e do Congo mimetizadas na morte “substituta” de Elizabeth Taylor; dirige-se para a agonizante estrela de cinema, erotizando os seus brônquios perfurados nas superexpostas varandas do London Hilton; sonha com Max Ernst, soberano dos pássaros. (The Atrocity Exhibition, J. G. Ballard)

Imaginar as atrocidades do 11 de Setembro e Abu Ghraib mimetizadas na morte “substituta” de Paris Hilton parece muito mais inaceitável, porque a piedade contemporânea sacralizou as suas atrocidades duma forma que não era possível na década de 1960. Em The Atrocity Exhibition, a observação de Dr. Nathan de que, ao nível do inconsciente, “as tragédias de Cape Kennedy e do Vietname podem de facto representar papeis diferentes daqueles que lhes atribuímos” é extremamente actual. (Como William Burroughs nos diz no prefácio de The Atrocity Exhibition, “Estudos indicam que os sonhos húmidos em muitos casos não têm um claro conteúdo sexual, enquanto que sonhos com um aberto conteúdo sexual em muitos casos não resultam num orgasmo”.) É muito claro que as aterradoras fotografias de Abu Ghraib eram encenações intensamente erotizadas, com guiões provenientes de pornografia barata americana. Love and Napalm: Export USA, sem dúvida (Love and Napalm: Export USA (1972) é o título da edição americana de The Atrocity Exhibition). Parte do motivo por que as imagens de Abu Ghraib foram tão traumáticas para uma cultura americana em profundo conflito que combina moralismo religioso com comércio hiper-sexualizado, e que se encontra unida unicamente por um gosto pela megaviolência, é o facto de exporem a equivalência entre intervenção militar e humilhação sexual, de que a cultura oficial depende mas ao mesmo tempo tem de suprimir.

É interessante comparar The Atrocity Exhibition e “State of Emergency” à série de fotomontagens de Martha Rosler, “Bringing the War Home” (1967-72). “Iconografia dos anos sessenta: o prepúcio nasal de LBJ, helicópteros despedaçados, as partes pudendas de Ralph Nader, Eichmann travestido, o climax de um happening em Nova Iorque: uma criança morta”: este fragmento típico de The Atrocity Exhibition poderia quase ser um comentário às imagens de Rosler, com as suas irrupções de guerra e atrocidade misturadas com cenas domésticas. Mas no caso de Rosler, diferentemente de Ballard, a justaposição surrealista tem um propósito claramente polémico. The Atrocity Exhibition, tal como “State of Emergency”, está destituído de qualquer intenção decifrável; as justaposições oníricas no trabalho de Ballard e Meisel parecem ter sido concebidas como re-presentações neutrais das substituições e elisões que o inconsciente mediatizado opera.

Os kits-fantasia de Steven Meisel, com as suas narrativas não explicadas e misteriosas, sugerem formas de adaptar Ballard, no futuro. Parte do problema da adaptação de Jonathan Weiss de The Atrocity Exhibition (2001) reside na subordinação do modelo fragmentário do romance à durée – o tempo vivido – do filme. A parte mais bem sucedida do filme é talvez o início, quando o texto de Ballard é dito sobre uma sucessão de imagens fixas, num estilo reminiscente de La Jetée (1962), de Chris Marker (um filme que Ballard admira, claro). E isto porque é o profundo silêncio das pinturas surrealistas que The Atrocity Exhibition descreve e se apropria – as suas praias esvaziadas de tempo – que marca o ritmo do romance. A mais feliz adaptação de The Atrocity Exhibition seria, precisamente, uma exposição – não só de fotografias, mas também reportagens filmadas, mandalas, diagramas, pinturas e cadernos de apontamentos. O visitante participante teria o poder de assemblar a sua própria narrativa a partir destes kits-fantasia.

K-punk


Traduzido por Nuno Marques Mendes







"Percorremos um longo caminho num curto espaço de tempo. Ainda não há muito tempo, as nossas vidas eram moldadas, em grande parte, pelo acaso. Nascia-se e crescia-se na Alemanha de Leste por acaso. Era o acaso que determinava a perda de todo o cabelo antes dos 30. É por acaso que se têm ou não mamas grandes. Acabava-se a trabalhar na mina, no campo, na floresta, no mar ou onde quer que fosse, por acaso. E não havia muito que se pudesse fazer. A falta de escolha simplificava tudo, mas matava completamente a oportunidade e a esperança.

Actualmente, acabou-se o jogo do acaso. Fomos libertados. As vidas das pessoas são agora cada vez mais moldadas pela escolha, no Ocidente e em outras partes do Mundo. Na verdade, este processo pode mesmo ter início ainda antes do nascimento da pessoa. Costumava existir um modo de se engravidar. Actualmente, já existem cerca de vinte. Mais tarde, podemos escolher ir para Londres, Laos ou Los Angeles. Podemos escolher fazer um transplante capilar. Podemos ter cabelo ruivo e encaracolado numa semana e ter uma grinalda de tranças afro na semana seguinte. É possível escolher a aparência pessoal de entre uma miríade de opções diferentes na cirurgia estética. Podemos escolher trabalhar na Sun, na Siebel ou na Siemens ou em qualquer empresa da sua preferência. E, enquanto isso, até podemos escolher ter um sexo diferente."



Jonas Ridderstrale e Kjell A. Nordströem
Capitalismo Karaoke, 2006, Público








Basicamente pensamos através de um efeito reflexivo, por contaminação. O nosso raciocínio não é muito requintado. Coisas que ouvimos ou lemos vão-se alojando algures no nosso cérebro, ou flutuam na memória RAM, juntando-se a outros dados já existentes. Quando produzimos um pensamento original esse pensamento é já uma mistura de outros, de autorias várias. Nasce de associações, activado por choques eléctricos que ocorrem no cérebro. O resultado final é variável: depende das fontes, do material utilizado, da qualidade ou da ginástica mental. Assim se expelem pensamentos mais ou menos originais. Ou nada originais.

As ideias vão-se encostando umas às outras, vão-se empurrando e confraternizando e produzem o pensamento comum, também chamado ideia-feita. É o efeito de contaminação. Ideias que contaminam outras: se se dá o caso de serem ideias com uma sustentação duvidosa daqui nascem afirmações e verdades duvidosas. É muito fácil uma sociedade inteira, um país inteiro, um mundo inteiro repetir ideias palermas, sem se lembrar de as pôr em causa. Sem se lembrar de investigar a origem e veracidade dos dados que compõem a ideia. A ideia-feita que se propagou por contacto físico, pelos meios de comunicação de massas, que parecia tão atraente, tão luminosa. Uma ideia tão acertada, tão lúcida.

Experimente, por favor, aplicar este raciocínio às grandes ou pequenas questões que atormentam a sociedade. As questões que todos repetem, sem conhecerem a origem. Se retirarmos peça a peça e observarmos com cuidado podemos concluir que alguns destes pedaços nunca foram reais. Ou que são especulações ensaiadas. E que aquela ideia não presta. Experimente, caro concidadão, fazer isto no editorial de um jornal.















De uma dama sei eu que toma banho de ratos. Ratos brancos, diga-se já, ela cantora, e assim mesmo só em noites em que interpreta a Thais.

Quando as luzinhas pestanejam no frontão da Ópera turva anunciando os debates da rameira de Alexandria com o pregador do deserto, quando um rebanho de velhotes feitos outrora à luxúria, e decanas várias, se aperta na entrada das bilheteiras por abrir, quando abrigados em palmeiras dispersas nas selhas da vizinhança já se afobam os criados nos jantares, Sibila Mauriac levanta o corpo da preguiceira onde dormiu refestelada todo o santo dia. Uma pancada no gongue logo atrai à roda as suas órfãs que são nove e escolhidas todas pelo formoso olhar, aspecto doentio, pela pequenez das mãos, tiradas todas de asilos da corporação dos vidros. E apesar dos bem grossos cortinados tilintam risos quando a Mauriac ordena enfim que esteja tudo a postos para o ritual do banho.

O dever de cada órfã é retirar uma peça, sempre a mesma, do trajo de Sibila Mauriac e arrumá-la no roupeiro à sua guarda. E as nove meninas tratam dos nove roupeiros que fazem toda a mobília do quarto com a preguiceira, as tapeçarias, os espelhos, correspondendo aos nove elementos perpétuos da roupa interior da cantora (a exterior, essa comporta outros, sempre diferentes).

Despida a Mauriac há que empurrá-la ao banho, pois em noites de canto é muito o seu cuidado a poupar-se de inúteis fadigas. Usam então as órfãs um carro angorá (melhor ainda se macaco-ruivo) cujo pelame arrasta no tapete loiro; numa cavidade feita ao corpo jaz dentro a Mauriac e vão as órfãs, para fazê-la engordar ainda mais, colhendo à volta bolinhos delicados de pistacha enquanto aos tropeções nas rodas, e à trela do veículo, trauteiam alegres o “coroa-te de rosas…” ou qualquer outra ária ao gosto da sua idade-ópera cuja atracção primeira é a Mauriac sua senhora.

Entre as paredes verde-água de um salão pentagonal, por baixo de um tecto de pergaminho translúcido que torna veladas as lâmpadas, a banheira é um lago esmaltado a bistre pousado nos mosaicos negros de cerâmica ornados de sécias amarelas e pervincas. Enfeitado ao estilo de Corinto, um largo tubo de bronze termina na goela aberta, nas orelhas baixas e bigodes agressivos de uma cabeça de leopardo, dando acesso a um viveiro de ratos dividido em três cochichos de soalho em corrediça, bastando puxar em baixo o cordão posto ao lado da banheira para fazer jorrar no tubo uma torrente infindável de bichinhos brancos.

Muitos amigos tem a Mauriac aos quais não proíbe em demasia a porta do seu banho. E aos cinco cantos da sala chega às vezes a ver-se um monte autêntico de cortesãos comprimidos para libertar à circulação das órfãs os arredores da banheira. É muito gorda, a Mauriac, muito branca a sua pele e de tal forma asseada que nem um pêlo saberíamos encontrar-lhe além da pestanas, sobrancelhas, de um sinal cabeludo que muito preza um pouco abaixo do mamilo esquerdo. Caem ratos numa chuva morna, correm a mulher toda zurzindo-a com os rabos pelados, arranhando-a aqui, além, com as unhas curtas e duras; e quando fatigados da agitação prolongada, já reduzidos a um manto de pele ondulada nas ancas de Sibila Mauriac, com a mão bela e molengona abre a cantora o ralo da banheira, puxa o cordão ao que sobra desse chuveiro de pêlo.

O médico da Mauriac, chinês franzino das Batignolles, contou-lhe um dia que esse banho de ratos, furões ou arganazes, era mais do que vulgar no Oriente antigo como estimulante da circulação nas belezas gordas com hábitos sedentários. Por sugestão apenas, ou mercê, o facto é que Sibila, a cantora, desde que entra em cena até surgir fata morgana atrás de um véu de tule para comoção do eremita santo, projectando fora de si mesma a carne pincelada a cor-de-rosa da garganta cristalina (verdadeira espuma glacial de uma cascata alpestre), não concede a menor trégua ao frenesi da voz, do gesto. E todos, mesmo os melómanos, que lhe ouviram a Thais, juram-se transportados longe no encanto do trilar da Mauriac, ainda que se diga inviável tão perfeito rouxinol levantar voo do mais fundo dessa garganta moldada em fortes acentos nortenhos.


(in Dans les années sordides, 1943)



André Pieyre de Mandiargues (1909-1991) nasceu em Paris, estudou arqueologia, viajou na juventude pela Europa e Mediterrâneo Oriental e viveu em Monte Carlo durante a Segunda Guerra Mundial onde publicou o primeiro livro. Regressou depois a Paris onde se juntou aos surrealistas e a André Breton. Publicou contos, poesia, ensaios de arte. Obra diversa, com um elemento unificador: o fantástico ou, nas suas palavras, pânico, no sentido de terror infundado. Obra de teor teatral, com cenários saídos de um universo mágico, de vivência quase mitológica, colada de mediterranismo, “banhada numa atmosfera sensual e ameaçadora” (Stirling Haig, “André Pieyre de Mandiargues and Les Pierreuses”, The French Review, Vol. 39, No. 2, Nov., 1965, pp. 275-280).


























Rodrigo Amado
"Close / Closer"
K Galeria
Rua da Vinha, 43 A, Lisboa
Quarta a Sábado, 15:00 - 20:00
13 de Dezembro de 2007 a 26 de Janeiro de 2008


Rodrigo Amado é músico e crítico de jazz e é a revelação de 2007 na fotografia, com a apresentação deste projecto na K Galeria. Um conjunto de composições sólidas, intensas, retratos de proximidade afectiva a pulsar realidade e vida.

A fotografia sempre acompanhou o seu percurso artístico, não é uma novidade, embora mantida na penumbra (já se materializou em capas da editora Clean Feed). Mais recentemente o seu trabalho foi acompanhado por António Júlio Duarte, correspondendo a uma maior dedicação e maturidade, resultando no projecto agora tornado público. Outros desenvolvimentos em www.rodrigoamado.com.

Nuno de Almeida Lima




"As pessoas de esquerda tendem a detestar tudo aquilo a que se associe uma imagem de força, supremacia e êxito. Odeiam os Estados Unidos, detestam a civilização ocidental, abominam os machos brancos, repudiam a racionalidade. Está visto que as razões por elas evocadas para detestarem o Ocidente, etc., não correspondem aos seus motivos reais. Dizem que detestam o Ocidente porque é belicista, imperialista, sexista, etnocêntrico e por aí fora, mas quando os mesmos defeitos surgem nos países socialistas ou nas culturas primitivas, encontram logo maneira de os desculpar, ou, no melhor dos casos, admitindo, a contragosto, que tais defeitos existem, ao passo que os apontam entusiasticamente (exagerando-os amiúde imenso) quando surgem na civilização ocidental. É portanto evidente que estes defeitos não constituem os motivos reais para essas pessoas odiarem os Estados Unidos e o Ocidente. Odeiam-nos por estes serem fortes e terem êxito."


O futuro da sociedade industrial, Manifesto de Unabomber
por Freedom Club, Fenda, 1997

















A propósito do sono, essa sinistra aventura de todas as nossas noites, podemos dizer que os homens se deitam todos os dias com uma audácia que seria incompreensível se não soubéssemos que era o resultado da ignorância do perigo.

Baudelaire


Queiram os deuses misericordiosos, dê-se o caso de existirem, velar aquelas horas em que nem o poder da vontade, ou droga ideada pelo homem, conseguem afastar-me das profundezas do sono. A morte é compassiva, porque quem a abraça não regressa, mas para aquele que voltou dos esconsos da noite, conturbado e instruído, não existe paz, nunca mais. Que louco fui, mergulhando com uma fúria arrebatada em mistérios que nenhum homem devia conhecer. Louco ou Deus, era ele – o meu único amigo, que me guiou, que foi à minha frente e que, no fim, percorreu horrores que poderão ainda ser os meus!

Conhecemo-nos, recordo, numa estação de caminhos de ferro, onde era o centro de uma multidão de vulgares curiosos. Estava inconsciente, atirado a uma espécie de convulsão que lhe concedia ao desprezado corpo vestido de negro uma estranha rigidez. Penso que na altura estaria próximo dos quarenta anos de idade, vendo-lhe os sulcos profundos no rosto, pálido e cavado, mas oval e verdadeiramente bonito; e toques de cinza no espesso e ondulado cabelo, na pequena e farta barba, que já tinham sido antes do mais brilhante e profundo negro. O semblante era branco como o mármore de Pentelicus, o corpo longo e possante, quase um deus.

Disse para mim, com o ardor de um escultor, que este homem era a estátua de um fauno da antiga Hellas, recuperado das ruínas de um templo e de algum modo trazido à vida nesta era perdida, vindo aqui sentir o peso e a dureza de anos devastadores. E quando ele abriu os enormes, fundos, furiosamente luminosos olhos negros eu soube que ele seria daí em diante o meu único amigo – o único amigo de alguém que nunca havia tido um amigo – pois percebi que aqueles olhos tinham pousado sobre a grandeza e o horror de territórios que ficam para lá da realidade e do vulgar discernimento. Territórios que eu fantasiara, primorosamente, em pensamentos ociosos. Por isso, enquanto afastava a multidão, dizia-lhe que ele tinha de vir comigo, ser meu professor e mestre em mistérios fulgurantes, e ele concordou, sem dizer uma palavra. Mais tarde descobri que a sua voz era música – a música de cordas penetrantes e de esferas cristalinas. Falávamos muito à noite, e de dia, enquanto eu esculpia o seu busto e lavrava em marfim pequenas cabeças, imortalizando as suas diferentes expressões.

É impossível falar das nossas pesquisas: tinham uma tão ténue relação com a concepção do mundo que os homens vivos partilham. Pertenciam àquele vasto e surpreendente universo de obscura vida e consciência difusa que repousa mais fundo que a matéria, tempo e espaço, de cuja existência só suspeitamos em certas formas de sono – aqueles raros sonhos que estão além dos sonhos e que nunca surgem aos homens vulgares, mas só uma vez ou duas na vida de homens de imaginação venial. O cosmos da inteligência que despertava em nós, nascido de inusitado universo como uma bolha se forma na flauta do truão, lhe toca como só uma bolha toca na sua sardónica origem quando aspirada de volta pelo capricho do brincalhão. Homens ilustrados suspeitam, apenas, mas sobretudo ignoram. Homens sábios interpretaram sonhos e os deuses gargalharam. Um homem com olhos orientais disse que todo o tempo e espaço são relativos e os homens riram. Mas mesmo esse homem com olhos orientais não fez mais que suspeitar. Eu tinha desejado e tentado passar para lá da suspeita e o meu amigo tentou e conseguiu, em parte. Então tentámos os dois, e com extravagantes narcóticos cortejámos terríveis e proibidos sonhos, no quarto da torre, no velho solar no venerável condado de Kent.

Entre os sofrimentos dos dias seguintes figura a grande tormenta – a impossibilidade de falar. O que vi e aprendi naquelas horas de impiedosas explorações não poderá ser revelado. Nunca. Por falta de correspondência com qualquer linguagem ou realidade. Digo isto porque, do princípio ao fim, as nossas deambulações foram de natureza sensível: sensações desconhecidas do sistema nervoso da humanidade vulgar. Eram sensações, sem dúvida, mas por elas passavam incríveis fundamentos de tempo e espaço – coisas que não tinham por base uma existência concreta, precisa. A linguagem humana entenderá melhor o carácter das nossas experiências se lhes chamar mergulhos ou ascensões: em cada período de revelação parte da nossa mente escapava ao que é real e é presente, esvoaçando por horríveis, sombrios e assustadores abismos, ocasionalmente atravessando, rompendo uns característicos e bem definidos obstáculos, que podemos descrever como viscosas, desajeitadas nuvens de vapor.

Nestes voos negros, imateriais, estávamos por vezes sós e por vezes juntos. Quando estávamos juntos o meu amigo ia sempre muito à frente. Eu conseguia aperceber-me da sua presença apesar da ausência de corpo, e um artifício da memória revelava-me o seu rosto, dourado por uma estranha luz, espantoso, de insólita beleza, face inusitadamente jovem, olhos em fogo, semblante olímpico e negrejante cabelo.

O tempo passava, desapercebido: para nós não era mais que uma ilusão. Só posso dizer que nos aventurámos num acontecimento único, que longamente maravilhámos e nos perguntámos porque não envelhecíamos. O nosso discurso era profano e sempre horrivelmente ambicioso – nenhum deus ou demónio tinham algum dia aspirado às descobertas e conquistas que idealizávamos em sussurros. Tremo quando falo nelas, não me atrevo a nomeá-las. Mas vou confiar-vos: o meu amigo uma vez escreveu em papel um desejo que não ousava colocar na língua e deixar escorrer dos lábios – corri a queimar o papel, aterrado. Dirigi-me à janela, olhei fixamente o céu fulgurante. Posso insinuar – mera intuição – que ele tinha projectos envolvendo a condução do universo visível e não visível, projectos que colocavam o movimento da Terra e das estrelas sob o seu domínio, assim como os destinos de todos os seres vivos. Afirmo – e reafirmo – que não partilhava estas aspirações extremas. Nego tudo o que o meu amigo possa ter dito, ou escrito, que me contradiga. Não sou um homem de força para me aventurar pelas esferas do inominável, única forma de alcançar o sucesso.

Houve uma noite em que ventos vindos do espaço nos enrolaram sem freio num interminável vácuo para lá de todo o pensamento e realidade. Percepções da espécie mais enlouquecida e intransmissível vieram embater em nós, conhecimentos do infinito que no momento nos sacudiram de alegria, e agora estão parcialmente perdidas na nossa memória, incapazes para partilha. Atravessámos obstáculos viscosos numa rápida sucessão e, a certa altura, senti que tínhamos sido levados para domínios de lonjura incalculável, onde nunca antes havíamos chegado.

O meu amigo ia muito adiantado enquanto imergíamos naquele pavoroso oceano de éter virginal, e eu via a exultação sinistra que animava a sua flutuante, luminosa, rejuvenescida face-memória. Subitamente o rosto obscureceu, rapidamente desaparecendo, e no momento seguinte descobri-me projectado contra um obstáculo, que desta vez não consegui penetrar. Era igual aos outros, mas superiormente denso – um volume húmido e pegajoso, se me é permitido aplicar estes termos para qualificar elementos deste reino imaterial.

Tinha sido – senti-o – travado por uma barreira que o meu amigo e mestre passara com sucesso. Debatendo-me ainda cheguei ao fim do sonho-narcótico e abri os meus olhos físicos, dominei o quarto da torre onde nos encontrávamos: no canto oposto repousava a forma pálida e ainda inconsciente do meu companheiro de sonhos, fantástico e conturbado, furiosamente belo enquanto a lua espalhava uma luz ouro-esverdeada no seu rosto de mármore.

Então, após um curto intervalo, o vulto no canto agitou-se: tenham os céus piedade e nunca deixem repetir-se o espectáculo que se projectou à minha frente. Não consigo descrever a forma como ele gritou ou que paisagens de infernos invisitáveis brilharam por um segundo nos olhos negros enlouquecidos de terror. Só posso dizer que desmaiei e não despertei até ele próprio recuperar e me sacudir, ansioso por alguém que o afastasse do horror e da desolação.

(continua)

Escrito em Março de 1922
Traduzido por Django







































Rui Chafes
"Eu sou os outros - I am the others"
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23 de Novembro de 2007 a 5 de Janeiro de 2008